segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Culpa


A culpa é um sentimento de auto-condenação, auto-reprovação que aparece quando há um juízo de certo ou errado. Nos sentimos culpados quando entendemos ter feito algo que merece reprovação, algo entendido como errado.
Antes mesmo de nascer podemos trazer conosco culpas que vão se agrupando no nosso inconsciente.
Se na fase intra uterina, por exemplo, o bebê sentir que seus pais não o desejavam, é capaz de introjetar no inconsciente um sentimento de que não era aceito, trazendo consigo ao nascer o sentimento de culpa por não ser bom o suficiente para ser amado por seus pais.
De início a criança é levada a crer que não deve sentir isso ou aquilo, mas o problema é que ela sente. Nossos sentimentos, quando ainda não compreendemos o mundo, subdividem-se em amor-ódio, prazer-dor. Assim, quando aprendemos que é errado odiar, mas que apesar disso odiamos, passamos a nos sentir culpados. Nesse contexto, o nosso padrão inconsciente a ser formado é o de que merecemos ser punidos.

Eva Pierrakos, em Não temas o Mal (Ed. Cultrix), coloca: “A culpa por odiar aqueles que mais ama convence a criança de que não é merecedora de nada que seja bom, alegre ou prazeroso. A criança sente que se ela tivesse que ser feliz um dia, o castigo, que parece inevitável, seria ainda maior. Portanto, a criança evita inconscientemente a felicidade, pensando dessa forma dar uma compensação e assim evitar uma punição ainda maior. Essa fuga da felicidade cria situações e padrões que sempre parecem destruir tudo que é mais ardentemente desejado na vida”.

Além desse aspecto, trazemos conosco grande carga do inconsciente coletivo e de nossos ancestrais do que é “certo” e ”errado”. Nesse sentido, a humanidade já delimitou o que é aprovável ou não, principalmente através da moral religiosa.

As mensagens advindas do nosso inconsciente coletivo servem para agravar este sentimento de culpa que estão em nossa psique.
O legado da era cristã, por exemplo, nos incutiu a idéia de que atos de sacrifício e sofrimento é que nos levam à felicidade e nos tornam admiráveis. Ser feliz, ter prazer, dinheiro, poder, sexo, sucesso, contrastam com a idéia de luta, privações, sofrimento, sacrifício, etc.
Nesta perspectiva, muitas pessoas não conseguem se relacionar bem com o dinheiro, por exemplo, porque consideram pecaminoso, sujo. Isso também acontece com a sexualidade, e assim por diante...

Assim, desde quando bebês já possuímos registros inconscientes, juntamente com uma mistura de emoções primitivas (INERENTES ao ser humano) que irão se chocar com os conceitos e valores de certo e errado, num processo que tem início dentro de casa, através dos ensinamentos de nossos pais e familiares e se perpetua nas escolas, e na sociedade.

Bom , a partir daí a culpa é conseqüência lógica deste processo.
Pouco se evoluiu no sentido de questionarmos todo este conteúdo incutido em nossas vidas.
Quando buscamos nos conhecer, acabamos nos perguntando de onde vem tanta culpa, e ficamos estarrecidos ao perceber quão grande é seu reflexo no corpo, na mente e na energia.
A culpa é um dos sentimentos mais arraigados e mais destrutivos do ser humano.
Mas, é importante entender suas raízes para iniciar um entendimento de que ela advém de compreensões errôneas de que sentimentos tão inerentemente humanos como raiva, ódio, rejeição, desejo, devem ser repelidos e condenados.
Entenda-se bem que não estou estimulando ninguém a alimentar tais sentimentos, coisa que também fazemos inconscientemente a todo tempo, mas admitir e assumir o que sentimos é o essencial no processo, para, então, minimizar estes sentimentos em nós.

Este aliás é um dos maiores equívocos do ser humano, quando guiado pelos aspectos culturais, principalmente quanto à moral religiosa: o de se entender como livre de sentimentos e emoções próprias do ser humano como a raiva,o ódio, ressentimento, inveja, etc.
A negação desses sentimentos que alimentam nossa culpa, faz com que reprimamos estas emoções e as coloquemos em algum lugar, preferencialmente fora de nós para que não possamos nem sequer enxergá-las. Assim, é fácil perceber nos outros estes conteúdos que não queremos enxergar em nós.

Isto acaba formando o nosso aspecto “sombrio”. A sombra, conceito formulado por Jung
[1], se forma porque não conseguimos dar sumiço nestas emoções que não queremos admitir como nossas, jogando-as num canto escuro em nós para que fiquem lá, sem serem vistas, pois na nossa busca pela perfeição não podemos mostrar para nós ou para os outros que somo tão “errados” por dentro.
É por isso que quando não nos conhecemos, colocamos a culpa no outro, porque não queremos enxergar em nós aqueles defeitos que vemos no outro.

Entender a culpa, pressupõe fazer um grande questionamento de todos os valores apreendidos até então. Bem como, ter contato com as situações geradoras de culpa para entender o nosso grau de responsabilidade num contexto mais objetivo, sem um olhar raivoso, cheio de remorso ou mesmo de auto-piedade. A partir dessa remoção dos conteúdos emocionais distorcidos, envolvidos no olhar que tínhamos a respeito do que se passou, poderemos, então, reavaliar nossa responsabilidade, entender nosso comportamento e , finalmente, nos perdoarmos.

Uma tarefa nada simples, bem trabalhosa por sinal. Mas precisamos ter claro que somente quando questionamos as estruturas do nosso pensamento e a partir do que ele é formado, temos a possibilidade de quebrar este ciclo de autopunição aceito pela nossa psique, descobrindo nossa liberdade e nosso amor por nós mesmos.

Nesse contexto, passamos a optar por um sentimento bem mais congruente e condizente com nossas atitudes, que é o da responsabilidade.
Ao fazer isso, muitos se sentirão culpados até por se questionarem, mas a persistência deve se manter, assim como se mantém na filosofia, sociologia, antropologia, enfim, em todas as áreas em que há constantes questionamentos, pois somente se cria algo novo e melhor rompendo estruturas arcaicas e que não nos servem como verdade.

Além disso, não existe uma verdade universal, existem verdades subjetivas para cada um de nós. Mais um motivo para questionarmos “verdades universais”.
Dias atrás, um grande amigo me contou uma parábola que dizia algo assim:
“Um intelectual foi procurar um mestre que vivia recluso numa caverna no inuito de conhecer a verdade, ele queria que o mestre lhe dissesse como conhecer a verdade. Questionado o mestre falou sobre cada um ter sua verdade. Não convencido, o visitante insistiu com o mestre para que ele lhe mostrasse a verdade. Então, o mestre lhe mostrou um diamante enorme, e encostou esse diamante em seu rosto e disse: A verdade é como este diamante: tem várias facetas, e aquela que lhe tocar mais, tal como esta face do diamante que lhe encosta o rosto, é a sua verdade e ela por si só lhe bastará.”

Quando encontramos nossa verdade podemos viver sem culpas, sem auto condenação e com responsabilidade, em suma, nos tornamos mais conscientes.
Para transcender nossas culpas, precisamos descobrir qual é a nossa verdade e seguirmos de acordo com ela, equilibrando o nosso auto julgamento.

Ser honestos com nossos sentimentos , aceitar que somos seres humanos passíveis de possuirmos emoções como ressentimentos, ódio, raiva, nos torna mais conscientes das emoções que são capazes de guiar nossas atitudes, nos torna mais humanos. O que, por sua vez, nos permite escolher agir com mais ponderação e equilíbrio, a ponto de não mais comprometer nossa energia com a busca pelo perfeito.

A aceitação é o caminho que liberta da culpa, dos medos, da raiva.
Aceitação de nosso ser integral, da maneira que ele é, com defeitos, com qualidades, com valores, é um prenúncio da re-descoberta do nosso amor próprio.
Enquanto continuarmos negando nossa condição humana dual também daremos continuidade aos nossos conflitos internos, deflagrando mais desentendimento do que compreensão.

Para modificarmos nossos elos de culpa e sofrimento, num primeiro momento devemos perceber nossa programação para tais sentimentos, num segundo momento aceitar que agimos assim por muito tempo sem nos recriminarmos, sem nos julgarmos por isso, reconhecendo que foi parte natural do processo. Para isso, talvez seja necessário muito diálogo interno, meditação, reflexões, mas de qualquer forma, o que importa é a predisposição para essa jornada interna.

A partir disso, podemos modificar esta programação direcionando nossos sentimentos, nossa energia para atitudes positivas, pois, assim como existe o hábito de cultivar o sofrimento, existe o hábito de cultivar a alegria, a leveza e a aceitação.
As duas correntes se desenvolvem da mesma maneira, o único problema é que, até então, criamos hábitos orientados para o lado do sofrimento.
Através do auto conhecimento, da nossa busca interna podemos optar por romper esta corrente de força negativa e iniciar a criação de uma corrente positiva.

Pode levar tempo, porque foram anos de “casamento” com o sofrimento, mas esta escolha juntamente com o cultivo do hábito de criar uma corrente positiva estão a seu alcance a todo tempo, o único porém é que talvez você nunca tenha olhado pra isso desta maneira.
Mas que é só mais uma maneira, e que pode tanto ser como não ser uma verdade. Se ela for uma das faces do diamante que lhe toca o rosto, siga com ela, do contrário continue buscando, do seu modo, a sua verdade.


[1] Para Jung, a Sombra é o centro do Inconsciente Pessoal, o núcleo do material que foi reprimido da consciência. A Sombra inclui aquelas tendências, desejos, memórias e experiências que são rejeitadas pelo indivíduo como incompatíveis com a Persona e contrárias aos padrões e ideais sociais.

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